Rerum Novarum, socialismo e família

Aos interessados no próprio desenvolvimento intelectual, julgo fundamental a consciência sobre as diversas perspectivas da Encíclica Rerum Novarum (numa tradução meramente gramatical: “Das coisas novas”), estudada não somente nos meios eclesiásticos, mas também nos cursos de Filosofia e Direito, onde vivenciei meu primeiro contato com o citado texto, à época, mais interessado no enfoque jurídico.

Qual o remédio ofertado para a miséria humana ou para os males da ganância?A questão derivará para outro polêmico tema filosófico: o mundo material seria um poço rochoso de injustiças? Parece-me que do ponto de vista exclusivamente materialista, a resposta seria afirmativa. Contudo, se admitirmos uma lei transcendente de causa-e-efeito como premissa, a conclusão seguirá por senda diversa.

A postura fraterna entre os cidadãos foi colocada como base do altruísmo e como uma via de solução para a problemática da miséria. Interessantemente, a Encíclica condenou a solução socialista, considerando-a fomentadora do ódio e da inveja. De fato, a eliminação da propriedade privada traduz-se no desejo de tomar para si o fruto do trabalho alheio. Não tive argumentos racionais para contradizer a poderosa conexão entre socialismo e injustiça, oriunda do sombrio sentimento de inveja das posses ou dos méritos alheios.

A respeitável Encíclica também enfrentou, corajosamente, as consequências da eliminação da propriedade privada. Vejamos: “Assim, essa conversão da propriedade particular em coletiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários ainda mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem sua situação”.

Na visão do Papa Leão XIII, o “remédio” socialista mais parece um veneno. Nas palavras do Pontífice: “o remédio proposto está em oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular é pessoal e, para o homem, um direito natural”. Em outras palavras, uma propriedade adquirida pelo resultado de um labor honesto, não deveria sofrer tantos impactos espoliativos, como tributações excessivas, apropriações ou invasões espúrias. Novamente nos termos da encíclica: “[…] que a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e impostos”.

Percebi ainda que a citada Encíclica está conectada ao seu tempo (1891), eis que associou a propriedade ao domínio da terra. Essa tendência ficou evidenciada pela questão proposta por Leão XIII: “Suportaria a justiça que um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou?”

Cumpre-nos destacar que as eras coletora, agrícola e industrial, hodiernamente sucumbem para a era informacional (que prefiro nominar de era da informação compartilhada), onde aplicativos para celulares e estruturas tecnológicas que chamamos de redes sociais transformam jovem recém-saídos da mocidade em influentes bilionários. O paradigma antigo sobre a propriedade associada à terra tornou-se ligeiramente anacrônico diante do mundo digital, eis que uma empresa virtual poderá valer mais que dezenas de fazendas.

Todavia, a encíclica em estudo porta princípios gerais que são atemporais, ou seja, dignos de conservação e estudo ético aprofundado. Locupletar-se indevidamente da propriedade ou do esforço alheio, seja ela territorial ou intelectual, é condenável pelas noções mais elementares de justiça. Portanto, resta-me concluir que a expropriação tirânica do que não nos pertença distancia-se dos mais basilares preceitos éticos. Creditar-se de supostas virtudes por desejar que o Estado atue como um mito protetor, de estilo Robin Hood, equipara-se a um estelionato ético que a sabedoria popular eternizou pelo bordão “fazer cortesia com o chapéu alheio”.

A noção de família é outro fator que também nos parece imutável e absolutamente constante nas sociedades. Os valores morais em torno deste conceito emergem naturalmente e acabam por estruturar relações sociais que adjetivamos de civilizadas. A meu ver, a família diferencia a civilização da barbárie.

Esta noção familiar, como um surgimento natural, lembra-nos a visão aristotélica e recebeu atenção da Encíclica que intitula esse artigo, pois afirmou categoricamente que os filhos devem ficar sob a tutela dos pais até que tenham adquirido o livre arbítrio (no sentido de possuírem maior maturidade). E conclui dramática e acertadamente: “Assim, substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural e quebram os laços de família”. Novamente, estamos diante da necessidade de limitar as funções do Estado, reconhecendo e valorizando o natural poder-dever familiar.

Pensei que não leria nada melhor que isso até chegar ao próximo título da citada Encíclica, a saber:“O comunismo, princípio de empobrecimento”. Tentei reescrever o texto com minhas próprias palavras, mas a clareza e precisão do conteúdo silenciou-me, impondo-me a modéstia de uma mera transcrição: “Mas, além da injustiça do seu sistema (referindo-se ao comunismo), vêm-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria”.

E complementou Leão XIII: “Por tudo o que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular”.

Outros fatores tratados na encíclica em foco também merecem rotundo aplauso, dentre eles, a condenação da nefasta “luta de classes” e exaltação da infinitamente mais evoluída e civilizada “simbiose entre classes”. A justificação está no efeito benéfico, assistencial e complementar das desigualdades nas vocações, nos talentos personalíssimos, nas habilidades naturais, na força etc. Em suma: temos nossas similaridades, mas também nossas úteis e evidentes desigualdades, fruto de nossas singulares personalidades e livre arbítrio.

Neste diapasão, poderá haver uma conexão harmônica entre capital e trabalho, capacidade de assumir riscos e desejos por segurança, enfim, agentes geradores de empregos e obreiros sedentos por labor. Depreendi do texto estudado, um flagrante incentivo à concórdia e uma explícita condenação à inveja e à injustiça oriunda do primitivo ódio entre coletivos diversos. Neste sentido, podemos observar notáveis trabalhadores não como mero instrumento de lucro, tampouco os ousados empregadores como simples instrumentos de obtenção de salários ou empregos. Vê-los-emos, antes de tudo, como irmãos que se movimentam livre e simbioticamente nas respectivas escolhas, capacidades e iniciativas.

Por fim, deparei-me com o título “Posse e uso das riquezas”, onde “ninguém é obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário ou do de sua família”. Note-se que o uso do termo “obrigado” condena implicitamente a tirania e o despotismo. A alternativa como solução para a manifestação do genuíno amor cristão foi a via da caridade, absolutamente livre e facultativa. Sim, a generosidade somente poderá advir da espontaneidade, jamais coercitivamente pela via estatal ou emergente de sentimentos que orbitem em torno da inveja do mérito alheio.

Embora não possa me considerar um religioso, rendo minhas homenagens e aplausos à lucidez contida nesta notável Encíclica. A meu ver, deveríamos refletir sobre tais conceitos para muito além das perspectivas ideológicas, mas também pelos prismas psicológico, sociológico, jurídico, histórico, filosófico, ético e também sob o ângulo transcendente… por que não? Interesses sociais e particulares, propriedades públicas e privadas finalmente poderão almejar a tão sonhada harmonia, de um lado, no respeito ao mérito alheio, e de outro, no maravilho recurso da solidariedade humana.

Derradeiramente, os valores observados no texto em foco detêm o incrível dom da atemporalidade. Portanto, convida-nos para um sonho incrivelmente hodierno, esclarecendo que a generosidade e a caridade legítimas possuem fontes endógenas, fruto de nossa própria consciência, de nosso autoconhecimento e de uma virtude ainda mais desafiadora: o autoenfrentamento.

 

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