ABUSO DE “DESAUTORIDADE”

Certo dia, recebi em meu WhatsApp uma interessante decisão da comarca de Capim Grosso, interior do Estado da Bahia[1], cujo comando jurisdicional firmou posição sobre a chamada lei de abuso de autoridade. A decisão não é única e, curiosamente, muitos magistrados sucumbiram a uma postura tíbia para coibir a criminalidade[2]. Notícias de uma inusitada greve de magistrados circulam nos bastidores[3] e promotores arquivam denúncias em “adaptação” à nova lei[4], embora a mesma sequer esteja em vigor.

Não criticarei juízes ou promotores, pois a insegurança advinda do tipo penal aberto contido na lei está evidente. A questão jurídica foi parar até mesmo em decisões sobre penhora de bens[5]. Enfim, a questionada lei provocou um imbróglio jurídico de grandes proporções e os magistrados estão visivelmente preocupados. E com justa razão, penso eu.

Juristas e analistas políticos desconfiam que a infeliz legislação não visa inibir os magistrados contra os criminosos chamados “pé-de-chinelo”, mas sim para facilitar a vida dos conhecidos popularmente como “bandidos do colarinho branco”. A notícia não foi divulgada apropriadamente pela imprensa dita “tradicional” e a falta de profundidade é sintomática de uma mídia brasileira bastante problemática e desacreditada.

O presidente da república Jair Messias Bolsonaro vetou vários artigos por diferentes razões, entre elas: “A propositura legislativa, ao dispor que se constitui crime ‘decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais’, gera insegurança jurídica por se tratar de  tipo penal aberto e que comportam interpretação, o que poderia comprometer a independência do magistrado ao proferir a decisão pelo receio de criminalização da sua conduta.”[6]

Tecnicamente precisas as razões do veto, mas para nosso lamento, os principais vetos foram derrubados. Interpretações e decisões também apontaram que a famigerada lei de abuso de autoridade (Lei 13.869/2019[7]) tornou crime manter alguém preso quando cabível sua soltura ou medida cautelar distinta da prisão. A título de exemplo das indignações contra essa teratologia jurídica, temos a fala do deputado Fernando Rodolfo[8], em tribuna, que menciona a festa dentro dos presídios brasileiros, em face da derrubada dos vetos presidenciais da referida lei.

Na sequência, alguns magistrados de primeiro grau fundamentaram que, diante da falta de sedimentação pelo STF do rol taxativo de hipóteses de prisão “manifestamente” devida ou indevida, “a regra será a soltura, ainda que a vítima e a sociedade estejam em risco” (trecho grifado em decisão judicial). O magistrado André Vieira ainda complementou sua decisão com argumentos jurídicos bastante razoáveis, considerando a aprovação “democrática” pelo Congresso Nacional de tal legislação e arguindo que não cabe ao juiz desrespeitar a lei. Estaria o juiz André Vieira juridicamente equivocado? Penso que não.

Finalizou o magistrado, em negrito: “O que o Congresso Nacional fez, ao possibilitar a criminalização da atividade judicante, livre, motivada, coerente ao posicionamento e convicções do julgador, amparada, repita-se, nas provas dos autos, foi consagrar a IMPUNIDADE, acuando magistrados em sua função”.

Derradeiramente, o magistrado determinou que fosse relaxada uma prisão decorrente de flagrante delito, por força da lei aprovada pelo Congresso Nacional, com ampla complacência da OAB (uma vergonha, acrescento), a fim de não correr o sério risco de incidir no tipo penal aberto de “ABUSO DE AUTORIDADADE”.

Senhores, o cenário é grave. A bizarra lei de abuso de autoridade deixou, malandramente, uma lacuna para a subjetividade e certas incertezas obviamente intimidadoras dos magistrados honestos e cumpridores da lei. Os bons juízes foram para o banco dos réus e, mais uma vez, assistimos a inversão de valores, onde o bandido julga o juiz e o “poste urina no cachorro”. Uma vergonha para os congressistas coniventes com isso. Uma vergonha para o Brasil.

Os astutos populistas e tirânicos agentes políticos, habilmente, tomaram o martelo dos julgadores. A pergunta é simples: A quem interessa a impunidade? Neste momento, confesso que estou desprovido de certezas, mas desconfio de muita coisa. Afinal, por que a estranha legislação teria sido votada antes da reforma da previdência? Chantagem? Ou tudo seria mera coincidência?

Lembremos que o Brasil está cambaleante, moral e financeiramente. Estaria em curso uma barganha entre a salvação econômica em troca da impunidade? Trata-se apenas mera hipótese, mas engrosso o caldo e a desconfiança de vários brasileiros pensantes. Se isso realmente for nossa lamentável realidade, clamo que não invertamos a ordem prioritária entre moral e finanças, a saber: moralidade em primeiríssimo lugar.

Para os leitores que ainda não entenderam o que está ocorrendo, traduzirei numa curta expressão: aqui jaz um ex-glorioso Poder Judiciário. Após décadas de lambança petista e peessedebista, finalmente compreendi a expressão popular “tá tudo dominado”.

Uma sociedade sem Justiça, com “J” maiúsculo, fluirá rapidamente para um terrível caos social e as pessoas terão que fazer justiça pelas próprias mãos. Prevejo tempos difíceis, caros leitores. Clamo aos juízes que não assistam essa barbaridade bovinamente. Reajam, excelências! Rogo que não se transformem em excrescências. Vocês devem isso à sofrida população que, aliás, paga os vossos polpudos vencimentos.

Enquanto os magistrados do bem permanecerem em seu estado de catatonia cívica, ou seja, calados frente a essas odiosas atrocidades legislativas e outras aberrações vindas de sua cúpula (que de supremo possui apenas o nome) teremos o triunfo de uma nova jabuticaba jurídica à brasileira: o abuso de “desautoridade”.

 

 

 

[1] Processo n. 0000737-74.2019.

[2] https://www.oantagonista.com/brasil/juiz-solta-traficante-por-temer-punicao-por-abuso-de-autoridade/

[3] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/10/01/interna_politica,793127/juntos-em-brasilia-juizes-avaliam-greve-contra-lei-do-abuso-de-autori.shtml

[4] https://www.oantagonista.com/brasil/lei-de-abuso-de-autoridade-leva-promotor-a-arquivar-denuncia-anonima/

[5] https://www.conjur.com.br/2019-set-26/juiz-critica-ambiguidade-lei-abuso-negar-pedido-penhora

[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm#derrubadaveto

[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869compilado.htm

[8] https://www.youtube.com/watch?v=iiNC7LcNW-s&t=50s

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