A “Gadolândia” de sinal trocado

Antigamente, a expressão “curral eleitoral” era o jargão político depreciativo para designar os rebanhos-eleitorais de certos candidatos adeptos ao patológico “coronelismo”.

Atualmente, a expressão pejorativa migrou para uma espécie de xingamento entre rebanhos rivais. Poucos analistas desapaixonados conseguem oxigenar suas reflexões. O trivial e o vulgar tomaram conta da briga bovina e surgem as mais desabonadoras expressões: “gado do Bolsonaro”, “gado do Lula”, “gado do Foro de SP”, enfim, “gado isso ou aquilo”.

Opositores e apoiadores confundem “conservadorismo” com “bolsonarismo” e debatem sobre a patologia do “petismo de sinal trocado”, como uma espécie semelhança nos meios e polaridade inversa no conteúdo. Ambos os rebanhos não conseguem perceber que existem vias alternativas para defendermos valores de forma despersonalizada, ou seja, desvinculada desse ou daquele político de estimação. Os incautos seguidos do lulismo ou bolsonarismo, infelizmente, perderam a noção da proporcionalidade e parece-me tangenciar o fanatismo.

De minha parte, prefiro seguir valores morais em torno da liberdade (ou seja, livres da tirania estatal) e da vida (livres da cultura da morte), ao invés de adorar líderes falíveis e, na maior parte das vezes, corruptos.

Neste cenário, multiplicam-se as críticas, algumas procedentes, outras imaturas, entre os apreciadores e detratores do Conservadorismo, Liberalismo, Estadismo (esquerdismo) ou Libertarianismo. Em suma, estamos numa confusão e ignorância ideológica generalizada em direção ao caos! Resta-nos questionar: a quem interessa o caos?

Particularmente, julgo algumas ofensas bastante exageradas, muito embora exista ajuste com a realidade em outras tantas. Dentre os aspectos inaceitáveis, destaca-se a perda do senso de proporção, tratando igualmente crimes com enormes diferenças no impacto lesivo à sociedade. Ofensas verbais são indevida e maquiavelicamente tratadas na mesma proporção que os horrendos desvios fraticidas de bilhões do erário público.

A generalização igualitária de delitos de magnitudes diferentes nunca evidenciou tantos fanáticos ideológicos e tanta ignorância de quem não compreende a importância da dosimetria da condenação. Se nossos líderes são péssimos, devemos ter a maturidade para verificar que alguns são “péssimos ao quadrado”. Afinal, quais os delitos comparáveis ao Mensalão, ao Petrolão, ao envio de bilhões para regimes ditatoriais. Vale dizer, os fanatizados que atacam apenas um lado da moeda, sem verificar própria podridão, pecam pela irracionalidade simiesca.

De um lado, assisto rebanhos antagônicos gritando palavras de ordem com se fossem gritos primais. De outro, lamento a escassez desértica de livres pensadores serenos e devidamente vacinados contra o fundamentalismo político. No meio disso tudo, uma população vitimada pela tirania à brasileira, pelo desemprego e pela desnutrição consequente, tudo isso às portas do inverno e do banquete viral.

Dentre inúmeras classificações do fanatismo, podemos destacar: 1. Fanatismo religioso, podendo gerar mortes em nome desta ou daquela crença. 2. Fanatismo artístico ou síndrome da adoração de celebridades. 3. Fanatismo esportivo, simbolizada por atos de violência entre torcedores rivais. 4. Fanatismo político, causado pela adesão cega a uma legenda ou personalidade populista.

O psicólogo social Gustave Le Bon (1841-1931), no seu livro Psicologia das Multidões, afirma que a ação inconsciente domina as multidões, substituindo a atividade consciente do indivíduo. Le Bon foi precursor de Freud (por suas teses sobre o inconsciente) e de Einstein (ao considerar a matéria como uma forma condensada de energia).

A autoridade intelectual do pensador Le Bon e de suas proposições convida-nos a aproximar o fanatismo do coletivismo (pensamento de massa), território a partir do qual o pensador José Ortega y Gasset cunhou o termo “homem-massa”, a fim de melhor designar esse mórbido genocídio de cérebros, transformando seres potencialmente pensantes em adestrados e revoltados zumbis revolucionários.

Como resultado desse “liberticídio” intelectual, emergiu o jocoso termo “gado”, utilizado politicamente para estigmatizar tanto os fanáticos políticos, como também estendê-la para qualquer opinião divergente da sua (aqui, a analogia atinge sua improcedência). É a velha tática antiética de rotular todos que sejam da facção contrária aos egóicos interesses do grupo rival.

Esse “bovinismo” fanatizador, curiosamente, atua em várias frentes, entre elas os seguidores adorativos e os opositores zumbis, portadores da mesma patologia – cegueira intelectual – com a polaridade invertida, ou seja, de sinal trocado. Esses fanáticos da adoração desmedida ou do ódio cego contrastam com a sadia liberdade individual e vincula-se ao coletivismo viral e “bovínico”, fruto da imaturidade e da covardia de assumir-se como protagonista principal de sua própria existência.

Le Bon chega a afirmar que “a multidão é sempre dominada pelo inconsciente”. Tal fato acarreta o “desaparecimento da vida cerebral”, acrescenta o autor. Em outras palavras, na mentalidade coletiva, o pensamento dá-se de forma teleguiada, como se os deméritos personalíssimos desaparecessem na massa impensante. Reitera-se, aqui, a expressão de Gasset: “o homem-massa”.

A individualidade sadia, no caso do fanático, sucumbe ao coletivismo fanatizador em negar o mérito do próximo e impede que o ignorante perceba que seu fracasso, seu demérito e absoluto insucesso, muito provavelmente, tenha como grande responsável a si mesmo.

Neste diapasão, ao negar sua individualidade e buscar estereótipos para ocultar seus fracassos existenciais, o fanático apenas demonstra sua inveja desabonadora e absoluta incapacidade de amar ao próximo como a si mesmo. Neste sentido, os maiores símbolos deste delírio coletivista advêm dos seres que terceirizam o protagonismo de suas respectivas existências, empurrando indevidamente o ônus de suas ações para a sociedade, para esta ou aquela elite, raça, gênero ou algum grupo ou agente externo a si mesmo, eleito como o “opressor” do momento.

Falta-nos a compreensão que somos todos irmãos em espírito. Somos carentes do conhecimento de que o altruísmo deve partir da nossa própria consciência, da lucidez personalíssima e decisão individual pela caridade, ou seja, oriunda do nosso livre arbítrio intransferível.

Em oposição à consciência luminosa está o pseudo altruísmo ou falsa bondade, ambos advindos de nauseantes imposições de políticos autoritários e seus fanatizados seguidores e idólatras do papaizinho-Estado, que se utilizam despoticamente do inconsciente coletivo para creditar-se de méritos que não possuem (cortesia com o chapéu alheio). Essa deficiência moral nada mais revela do que uma veia tirânica, não somente dos ditadores que ocupam postos de mando, mas também do próprio gado que se utiliza da crítica ou do afago, a partir de seus próprios interesses mesquinhos.

Finalmente, Le Bon choca-nos com sua análise fria, ilustrativa e lamentavelmente verdadeira sobre o fanatismo: “Sendo paralisada a vida do cérebro no hipnotizado, ele torna-se escravo de todas as suas atividades inconscientes, que o hipnotizador orienta como quer. A personalidade consciente desaparece; a vontade e o discernimento ficam anulados. Os pensamentos e sentimentos são então dirigidos no sentido determinado pelo hipnotizador”.

Toda modalidade de fanatismo tem suas características, dentre inúmeras outras: 1. Devoção irracional. 2. Cegueira argumentativa. 3. Fervor na análise. 4. Preconceitos ou argumentos ad hominem. 5. Analisar fatos com lentes ideológicas. 6. Agressividade excessiva. 7. Ódios diversos. 8. Delírios de grandeza.  9. Generalizações nas rotulações coletivistas.

Sejamos, pois, pensadores, analistas ou apenas eleitores conscientes, cientes que todos os políticos, sejam eles do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário (principalmente esse último, em razão da vitaliciedade dos cargos) sempre será ocupada por seres errantes e falíveis, como todos nós. Cabe-nos criticar os erros e reconhecer os acertos, de forma ponderada e desapaixonada, como profilaxia de nos tornarmos bisonhas figuras desse ou daquele rebanho.

Se você aplaude qualquer coisa que saia de seu político de preferência, só porque você é incapaz de reconhecer sua condição “humana, demasiadamente humana”, bem-vindo a “gadolândia”. Todavia, se você comemorou o recente e flagrante atentado contra a liberdade de expressão da nossa suprema corte, apenas porque tal ato atingiu seus desafetos políticos, bem-vindo à mesma “gadolândia”, mas de sinal trocado.