Thomas Kuhn e a ciência política

  • A ciência normal

Thomas Kuhn afirmou que a ciência normal está relacionada as realizações científicas passadas e acumuladas, que são reconhecidas durante algum tempo, por alguma comunidade científica específica, como proporcionadora dos fundamentos para sua prática posterior[1].

Em seguida, Kuhn afirmou que as citadas realizações científicas tinham duas características como “paradigmas”, ou seja, orientações ou modelos que embasam as tradições ou as correntes da pesquisa científica[2]. Tais tradições representam compromissos com as mesmas regras ou padrões da prática científica. Em outras palavras, um consenso sobre pré-requisitos para uma espécie de “selo-de-qualidade” científica, ou um “ISO-9000” da credibilidade metodológica, que o autor ora estudado denominou de “ciência normal”.

Gosto dos exemplos ligados à Psicologia. Partirei da 1ª. força denominada psicologia comportamentalista ou behaviorismo (do inglês behavior). Freud inaugurou abruptamente uma 2ª. força através de profundos estudos sobre histeria e neuroses, apontando nosso olhar para as profundezas do inconsciente. Nascia a teoria psicanalítica. Posteriormente, com a figura notável de Maslow, os cientistas ligados à psique humana saltariam abruptamente para a psicologia humanista (3ª. força) e, em seguida, para a psicologia transpessoal (4ª. força). Tudo isso foi possível por dramáticas revoluções paradigmáticas, que simploriamente sintetizo como radicais mudanças cosmovisionárias.

Absorvi dos ensinamentos kuhnianos que a emersão de uma nova perspectiva impacta profundamente não somente a opinião dos cientistas, mas também em seus respectivos métodos epistemológicos. Podemos estender nossos exemplos da psicologia para a física, a medicina, o planejamento urbano, a política etc.

  • As anomalias e as crises

Os momentos de transição de um paradigma científico para outro podem ser encarados como “crises paradigmáticas”. Tudo pode caminhar bem com o paradigma dominante e, repentinamente, as anomalias começam a aparecer e interferir no sistema de “crenças-científicas”. Os newtonianos já não mais estavam na crista da onda e os holofotes migraram, subitamente, para a relatividade de Einstein. Num piscar de olhos, abriram-se janelas para solucionarmos as incômodas anomalias emergentes e para miríades de outras possibilidades científicas.

Esse virulento desmoronamento científico dá-se como num castelo de cartas atingido pelo vento. O paradigma anterior, segundo Kuhn, é percebido repentinamente e não racionalizado paulatinamente. O processo lembra-nos da troca Gestalt, ou seja, ocorre de uma vez e não está isolada do todo.

Da mesma forma que os koans propostos por mestres do Zen aos seus discípulos, as anomalias científicas não podem ser resolvidas na forma tradicional e necessitam de um contexto mais amplo para sua compreensão. Nesta linha de raciocínio e soltando minha imaginação para outros horizontes, gosto de imaginar que conheçamos como “extraordinários”, “miraculosos” ou “inexplicáveis” sejam “apenas” anomalias paradigmáticas, que convidam a ciência convencional materialista ou “normal” (no linguajar kuhniano) a ousar novas possibilidades ditas espiritualistas ou transcendentes.

Estes momentos de transição desafiam os “dogmas-científicos” (interessante e paradoxal expressão), gerando uma crise do paradigma científico até então dominante. Gostaria de instigar a intelectualidade de meus leitores materialistas e ateístas afirmando que existência de Deus, da alma, do espírito, das energias sutis ou de outras possibilidades consideradas anticientíficas, talvez não sejam propostas ao arrepio da ciência, mas sim de uma aurora científica inovadora.

Talvez a ciência convencional ainda não esteja preparada para observar tais conceitos. Instigações à parte, compreendo a proposta de Kuhn como um convite à modéstia, em especial aos materialistas, positivistas, marxistas e “ateístas praticantes”[3] de seus respectivos credos em relação ao deus-matéria, ao deus-tubo-de-ensaio e ao deus-estatal. Tais expressões, obviamente, são provocativas, mas também reflexivas.

Chistes reflexivos e filosóficos de lado, retomemos Kuhn para apontar que o status do paradigma é medido por sua capacidade de resolução de problemas que os cientistas considerem prioritários[4]. Todavia, no momento que as anomalias emergem, resta evidente que a atual amplitude paradigmática não dá conta de resolver os novos desafios.

A política e o campo das ciências sociais nos fornecem o paradigma positivista, o marxista e todos os seus derivados, onde um universo de anomalias deveriam envergonhar seus adeptos, ao menos os mais honestos. As mortes do nacional socialismo, as tiranias socialistas, as vilanias comunistas e, recentemente, as barbáries ocorridas em solo venezuelano sobre uma das maiores reservas mundiais de petróleo (ano-base: 2019) mostram que os regimes intervencionistas falharam e falham miseravelmente na promessa de uma sociedade com menos sofrimento.

O paradigma baseado exclusivamente nas soluções materialistas, marxistas ou positivistas não resistiu ao teste da realidade. Carecemos desesperadamente de um novo paradigma, talvez baseado em aspectos interiores e não exteriores, talvez num endoesqueleto moral que transcenda nosso disseminado hedonismo e a tosca materialidade marxista ou positivista.

 

  • A ciência extraordinária

Cumprida as etapas kuhnianas da consciência da anomalia e da posterior crise paradigmática, estaremos diante do território fértil para a emergência de certa insegurança e, até mesmo, desconfiança do novo paradigma vindouro. Nas palavras de Kuhn: “A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas técnicos da ciência normal”[5].

Em suma, após a consciência das anomalias e da crise paradigmática, não podemos esperar outra coisa senão uma certa desorientação da ciência normal. Alguns tentarão inovar, em outras palavras, desviarem-se das tradições científicas para resolver a anomalia e então começam as investigações extraordinárias. Eis o tempo da chamada ciência extraordinária.

Dito de outro modo, quando a anomalia é entendida como algo muito maior do que um novo quebra-cabeça a ser resolvido pelas mesmas regras da ciência normal, teremos as etapas da crise e abriremos espaço para o clímax da reestruturação científica: a ciência extraordinária. Em termos sociológicos: de Marx à Mises. Em termos éticos: do exterior para o interior. Na política: da covardia da terceirização das responsabilidades para a coragem da assunção personalíssima.

 

 

[1]Thomas KUHN, A estrutura das revoluções científicas, p. 71.

[2]Ibidem, p. 72.

[3]Expressão cunhada pela jocosidade do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, que se autodenomina um “ateu não praticante”.

[4]Ibidem, p. 88.

[5]Ibidem, pg. 147.

[6]Ibidem, pg. 309.

[7]https://filosofiatotal.com.br/curso/curso-de-historia-da-filosofia/aulas/thomas-s-kuhn/