A PROFILAXIA DA TIRANIA

Levante a mão quem nunca teve problemas com parentes, chefes ou amigos mandões. Afinal, como conviver com o autoritarismo? Como ajudar o tirano a perceber e abandonar a imaturidade que provoca seu despotismo? Quais seriam os limites de nossas interações? Até onde devemos aceitar os atentados contra nossas escolhas e nosso livre arbítrio? Onde estaria o justo equilíbrio entre o individual e o coletivo?

Inicio essa reflexão evocando a balança da justiça nos eventos mais banais do nosso cotidiano. De um lado, imaginemos um inocente e fraterno contentamento ao recebermos amigos e familiares em nossos lares. No outro prato da balança, tal relação demandará cortesia e respeito dos visitantes aos hábitos e regras do anfitrião. “Em Roma, como os romanos”, ensina o adágio popular. Visitemos nossos amigos e familiares, mas não nos esqueçamos de tocar respeitosamente a campainha e pedir licença ao entrar.

O texto pode ser rotulado de óbvio, mas o que fazer diante da carência desta obviedade educacional? Qual o ponto em que uma carinhosa visita se transforma em indesejada intromissão? De fato, os tiranos preferem ignorar tais sutilezas educacionais impostas pelo respeito à privacidade alheia. Encontramos esse ranço existencial tanto nas intrigas familiares, como nos partidos políticos centralizadores de poder. Alguém pensou no comunismo petista ou no socialismo tucano? Acerto em cheio. Os tiranos combatem tudo que seja privado, meritório, individual, particular ou personalíssimo, seja pelo esquerdismo carnívoro, seja em sua versão vegetariana.

Vale a lembrança do ensinamento contido no velho jargão popular: “o que é de todos não é de ninguém”. Pois bem, nesta altura da reflexão, as perguntas pragmáticas sobre a tirania coletivista passam a nos desafiar: Existem limites para o coletivo? Até onde o público poderá invadir o espaço privado? Amputar teu braço, ínclito leitor, poderia ser pauta para uma votação democrática? A vontade da maioria poderia tudo? Como conciliar as jurisdições individuais e coletivas?

Os liberais clássicos tendem a resolver essa intrincada questão pela propriedade privada e pelos direitos individuais. A ideia é alvissareira, mas ainda carece de aspectos transcendentes, tanto morais como espirituais. A posição conservadora, por sua vez, advoga o equilíbrio entre o social e o individual. Restar-nos-ia “apenas” adquirir consciência sobre os limites jurisdicionais entre o comum e o particular. A nenhum indivíduo, a nenhum governo e a nenhuma coletividade é dado o direito de adentrar em tua casa sem pedir-te licença. Eis aqui nosso direito não apenas legal, mas também natural à legítima defesa. Sim, estás autorizado legal e espiritualmente a repudiar qualquer agressão à tua integridade física, moral ou patrimonial.

Finalmente entendi minha reflexão em relação aos perturbadores de nossos refúgios materiais, emocionais, mentais e espirituais. Na verdade, trata-se de uma reflexão política. Outrora, ouvíamos a expressão chistosa de que haviam comunistas embaixo de nossas camas. A diversão em torno da frase é legítima e denota bom humor, mas por detrás do chiste temos um zeitgeist hegemônico dominado por uma mentalidade que adestra seus asseclas a invadir o espaço alheio, tal qual Pavlov condicionava seus cães.

O software cultural cruelmente implementado nas mentes em formação levam-nas ao obscurantismo. Os fanatizados mais violentos tornam-se revolucionários sob a arrogante ilusão de serem salvadores do mundo, com suas bandeiras vermelhas. Na outra ponta, os mais pacíficos confundem as maravilhosas virtudes da bondade, da modéstia e da elevação espiritual com a aceitação bovina de todos os abusos contra suas respectivas individualidades morais e patrimoniais, seja em nome de um coletivo qualquer ou por algum modismo politicamente (in)correto.

Por derradeiro, mister se faz o enfrentamento de mais duas questões: 1. Como lidar com o tirano? 2. Devemos manter posição genuflexa ou demandar limites? Aqui reside o antigo paradoxo popperiano da tolerância[1]devemos tolerar a intolerância? A provocativa questão joga-nos num looping reflexivo, pois se tolerarmos a intolerância, cairemos na própria intolerância. Se não a tolerarmos, seremos nós os intolerantes. Advogo as seguintes respostas aparentemente contraditórias, mas portadoras de uma lógica espiritual cristalina: 1. Tratemos a todos com amor, inclusive o tirano. 2. Devemos impor duríssimos e assertivos limites ao tirano, pois amor não significa subserviência. Touché!

 

[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Paradoxo_da_tolerância