Tirania e perdão
Estou convencido que as causas das pequeninas rusgas e dos grandes dissabores relacionais emergem da fricção entre personalidades de diferentes patamares espirituais ou de consciência, como queiram. Sim, falo de diferenças éticas e na divergência de valores em seu aspecto qualitativo. Enfim, o enfrentamento dos graus evolutivos de nosso caráter está sobre a mesa.
Paradoxalmente, justamente tais amargores relacionais arrancam-nos de nossa zona de conforto para buscarmos novos e mais sublimes padrões de reflexões, autoconhecimento, auto-enfrentamento e, por fim, autotransformação. Mas como tolerar o intolerante? Como expulsar um indesejado invasor de nosso lar com amabilidade ou pacifismo, se ele não respeita essa linguagem? Devemos renunciar à nossa liberdade e submetermo-nos aos caprichos do intruso?
- Origem
O grande laboratório ou território para observarmos a tirania e o perdão está na própria convivência humana. O convívio pode ser visto como um notável recurso evolutivo, inclusive, para adquirirmos noção de nossa própria individualidade, além de propiciar a reflexão sobre valores sombrios e/ou edificantes.
Algumas convivências frutificam de nossas escolhas personalíssimas ou predileções cotidianas (amizades) e outras nos são ofertadas pelas teias da vida familiar e profissional, cujos desafios não podemos nos esquivar sem impor prejuízos ou mágoas a outras pessoas e a nós mesmos. Eis aqui os desafios evolutivos das reconciliações e aprendizados recíprocos.
- Diagnóstico
A tirania poderá se manifestar na forma de violência explícita, onde dominará quem detiver o maior bíceps. Todavia, os piores tiranos são os travestidos de cordeiro, cujas expressões mais comuns são “pela democracia”, “pelo povo”, ou a pior delas, “pelo teu bem”. Aliás, a tirania “pelo bem do povo” é a mais opressiva, pois o tirano a exerce sem a condenação de sua própria consciência.
No campo político, convencionamos chamar tal estratégia despótica de populismo. Constata-se facilmente que o populismo tirânico não se limita às abjetas manobras e maledicências pelo poder. Existem egos bisbilhoteiros dentro e fora das disputas eletivas. Políticos, juízes e autoridades, tanto corruptos como despóticos, lamentavelmente, abundam em nosso querido Brasil.
Entretanto, se observamos cautelosamente, notaremos perfis tirânicos também em muitas relações de nosso cotidiano profissional, familiar e no campo das amizades. Bisbilhoteiros, palpiteiros e invasores de nossa vida privada, de nossa intimidade ou de nosso lar causam-nos de severos tormentos e podem, até mesmo, destruir nosso casamento, desautorizar nossa paternidade/maternidade e provocar a ruína de nossa programação existencial, sempre com a retórica de que tudo foi feito pelo nosso próprio bem. Devemos perdoá-los? Como trata-los?
- Contenção legítima
Tendo a legitimar a resistência serena, ou seja, a feita com racionalidade, lógica, proporcionalidade e bom senso. No meu particular nível de consciência, valido a contenção dos invasores de nossos lares ou de nosso espaço personalíssimo, mormente aqueles que desrespeitam nossos valores, impondo-nos a tolerância do intolerável.
Podemos e devemos resistir ao tirano de plantão, mas desprovidos de sentimentos sombrios. As ações firmes, tenazes e estoicas são conciliáveis com a serenidade, a altivez e a confiança dos justos. Justiça pode ser amiga da compaixão. Fácil? Possuo uma rotunda negativa como resposta. A próxima pergunta não será tão óbvia: o que fazer quando os sentimentos mais obscuros aparecerem?
- Lago cristalino
Usarei a imagem de um lago cristalino. A convivência gera movimento e a sujeira sedimentada no fundo lamacento do lago poderá emergir. Obviamente, devemos ter cuidado no convívio profissional, familiar e social, pois a lama poderá provocar problemas que nenhum dos envolvidos está capacitado para suportar.
O tirano remexe e agita essas águas até provocar uma reação contrária. Tsunamis à vista! Em geral, o intrometido termina por amargar o peso da solidão, da condenação e de uma morte assombrada pela violência e pelo ódio de seus antigos asseclas fanatizados, que algum dia despertarão de seus respectivos estados sonambúlicos.
A relação entre o títere ideológico e o tirânico é brutalmente didática. Ambos os lados aprenderão, inclusive o observador distante. Os déspotas aprenderão a respeitar o livre arbítrio alheio e os idiotizados sonâmbulos (adoradores da terceirização existencial e do deus-Estado) compreenderão que devem abandonar o parasitismo e assumirem o protagonismo de suas vidas.
- Psiquismo frágil
Seja na convivência política mais ampla ou em nosso ambiente familiar ou profissional mais restrito, encontraremos o ambiente para trabalharmos a difícil conexão entre tirania e perdão, tanto na polaridade ativa como na passiva. Uns têm mais dificuldade em perdoar, outros perdoam com mais facilidade, mas algo os impede de reconhecerem suas falhas e pedirem perdão por suas intromissões indesejadas. Nos dois casos, o orgulho parece-me o grande agente causador da fragilidade psíquica.
Um psiquismo forte emerge, paradoxalmente, da coragem de assumirmos nossas fragilidades e imperfeições. Isso nos coloca no controle do momento evolutivo vivente e convida-nos para ações edificantes. Opostamente, o psiquismo frágil esconde-se nas armaduras do ego, a fim de proteger-se lodo emergente dos lagos narcísicos, próprio e alheios.
Perdoar a animalidade dos leões alheios não implica em acolhe-los em seu leito. Isso seria um óbvio ato de insensatez. Perdoar é renunciar a condição de verdugo, desprendendo-se da necessidade revanchista, mas conservando as medidas profiláticas contra a tirania. Manter as feras afastadas é puro ato de bom senso.
- Enfrentamento
O déspota de plantão poderá ser um parente desrespeitoso, um político populista, um retórico comunista, um insensível materialista, um chefe arrogante, um oportunista malandro, um carente energívoro etc. Cabe-nos a decência de um enfrentamento altivo, elevado e assertivo, não apenas para a nossa própria paz e integridade familiar, mas também pelo bem do próprio tirano, cuja limitação imposta por nossos atos de contenção mostrá-lo-á as privações impostas por seu despotismo.
Como previmos, o tirano encontrará em seu destino o azedume e o fel da solidão. Seus comparsas serão incapazes de um único sentimento de amor genuíno e disputarão o acoite para a imatura e crudelíssima função de carrasco. O pobre tirano, na verdade, é um frágil psíquico, um covarde, um tolo cuja carência narcísica apressa-se em apossar-se de tudo e de todos, a fim de preencher um vazio existencial de tamanha magnitude, que o impede de respeitar o tempo o espaço adequado das relações humanas.
- Tratamento e caratê
O perdão é a cura para a libertação. Responderei as provocativas perguntas deste texto com outra questão: com que olhos vemos nossas experiências? Perdão não significa esquecimento, tampouco tolerância com a maldade ou a tirania. Agiremos com veemência, se assim for preciso, mas despido de mágoas, ressentimentos ou espírito vingativo. O ato de perdoar representa a caridade no repúdio do mal, jamais na sua aceitação.
Nos tempos de criança, eu treinei caratê e conquistei mérito para galgar uma faixa qualificada. Animado com a possibilidade de evoluir naquela arte marcial, fui agraciado com o direito de perguntar o que quisesse ao faixa preta da academia. Há algum tempo incomodava-me um fato intrigante dos combates caratecas. Aquele que recebia um golpe do adversário deveria interromper a luta e agradecê-lo.
No dia da fatídica cerimônia da entrega das novas faixas, indaguei o Senseifaixa preta para entender o que significava o estranho agradecimento pelo golpe recebido. O mestre mostrou apreço pela pergunta e presenteou-me com uma preciosa lição: quando o adversário rompe tua defesa, ensina-te onde está o ponto vulnerável da tua luta. É por esse ensinamento que agradeces. Como não o atingistes, nada ensinastes ao oponente, assim sendo, não mereces agradecimento algum.
- Cura e gratidão
A partir desse insólito ensinamento germinou em minha consciência uma semente de lucidez sobre a conexão entre perdão e gratidão. Em síntese, perdão pelo golpe e agradecimento pelo ensinamento. De alguma forma, tal lição ainda desafia minha racionalidade, intrigando-me com reflexões sobre a inteligência de nossa união pelo convívio, a fim de polirmos nossas arestas mais ásperas, num sofisticado processo de burilamento.
A simbologia aqui usada convida-nos a digressões profundas e contundentes, tanto no estilo mítico e simbólico da teia de Indra, como no estilo oriental dokoan zen, ou ainda através dos sofisticados e maravilhosos ensinamentos civilizacionais cristãos. Confesso que esse texto foi desenvolvido para lapidação de minha própria personalidade, porém talvez sirva também para ti, caro leitor.
A ponderação é complexa, mas minha conclusão é relativamente simples: quando formos credores, exercitemos a grandiosidade de perdoar. Na posição de devedores, exercitemos a modéstia rogando sua concessão. Resta-nos a compreensão de que na medida que formos capazes de perdoar, adquiriremos mérito para que também sejamos perdoados.
Derradeiramente, conclui que perdão está longe de significar inação ou inércia, mas seu exato oposto. A expressão “dar a outra face” está distante da negligência atitudinal, mas sim no repúdio da face materialista e oferta de uma ação oriunda de nossa face transcendente. Eis aqui a resiliência estoica e altiva, desprovida de rancor e culminando na feliz união entre a dura lei de Moisés e a doce suavidade cristã. Eis a legitimidade da firme correção em nada contra caridade, mas sim por caridade. Enfim, em linguagem hodierna, eis os laços simbióticos entre justiça e amor.
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Excelente artigo Tom. O laboratório para testar e desenvolver o ser humano é de fato o relacionamento interpessoal. Eu não acredito em monges que buscam o isolamento do cárcere ou as montanhas para se depurarem. Como você disse, é esse atrito de uns com os outros no relacionamento diário que nos dá o polimento necessário, nos tornando pessoas melhores. Acrescento ainda a profunda lição do mestre carateca. Ouvi uma vez em uma entrevista do Dalai Lama que os nossos inimigos são nossos melhores mestres, pois são eles que nos revelam nossos defeitos.
Obrigado pelo ótimo texto.
Caro Gilberto. Agradeço imensamente suas gentil palavras. Cordial abraço do seu amigo Tom Martins.